Os Estados Unidos estão corroendo socialmente, com direita e esquerda entrando em constante guerra política, mas não há nenhum limite de respeito aos moldes republicanos. A polarização enfrenta seu maior grau de tensão. O discurso do “nós contra eles” nunca esteve tão forte. A malha social americana está corroendo com uma velocidade vertiginosa e o que antes era uma divisão ideológica agora parece um abismo intransponível. Há quem concorde que o novo filme de Alex Garland, Guerra Civil, é um alerta em comparação ao sistema atual, que enfrenta um período de eleições pela frente. Imagine você que os historiadores gostam de apontar para a década de 1860, quando a face futura da América tentou preservar a União enquanto americano matava americano — ou ainda mais recentemente, 1968, o ano zero dos motins, assassinatos e quedas livres morais. Parece que pode acontecer novamente.
Também é 2024, não exatamente, embora Guerra Civil passe esta impressão ao expectador, uma vez que a especificidade de mostrar às pessoas todo o espectro de “opinião editorial”, como as coisas poderiam realmente ser caso o próximo dominó lógico caísse e o governo decidisse tratar estes estados divididos como uma potência hostil. Por isso, não é por acaso que os nossos guias turísticos são fotojornalistas, exemplos de objetividade e ambos considerados combatentes inimigos pela administração por prestarem testemunho. Lee (Kristen Dunst) é uma lenda entre seus colegas fotógrafos da zona de batalha e, junto com seu parceiro jornalista de longa data, Joel (Wagner Moura), ela cobriu atrocidades em todo o mundo. Documentar tiroteios e resistências militares em seu próprio país, no entanto, deixou a nossa protagonista não apenas cansada e vulnerável, mas também assombrada por esse pesadelo. O olhar fixo em seus olhos corre o risco de se tornar algo permanente.
Quando um homem-bomba ataca a Guarda Nacional durante um protesto, Lee acaba protegendo uma jovem perto da explosão. Este é Jessie (Cailee Spaeny de Priscilla). Acontece que ela também é uma aspirante a fotógrafa de guerra e está animada para conhecer Lee. Talvez essa veterana pudesse dar algumas dicas. Lee recusa educadamente. Como nós, ela não tem certeza se essa jovem de olhos brilhantes é uma fã ou tem força psicológica suficiente para esse trabalho. No entanto, na manhã seguinte, Jessie se insinuou no grupo de viajantes, que inclui Sammy (Stephen McKinley Henderson), um escritor que arquiva “tudo o que sobrou do New York Times”. Eles estão indo para Washington, na esperança de que um deles consiga a primeira entrevista com o presidente em 14 meses. Também há rumores de um grande impulso de resistência ao Capitólio. Deveria acontecer no dia 4 de julho. Bem apropriado.
Com todos esses acontecimentos, Guerra Civil serve de guia para levar você por um caminho sujo pela vida americana durante a guerra, de mar a mar, mas por toda a terra arrasada que fica entre eles. Várias paradas ao longo do caminho variam o sentimento de terror (um posto de gasolina rural que também funciona como câmara de tortura para prisioneiros de guerra) e coragem (uma espécie de modelo de cidade industrial onde as pessoas tentam criar uma aparência de comunidade). Um desvio em particular, envolvendo dois dos velhos amigos de Joel, o soldado estranhamente calmo interpretado por Jesse Plemons e uma vala, é insuportavelmente tenso. Às vezes, eles se deparam com caricaturas do estado vermelho e mercenários em camisas em xadrez madras e empunhando metralhadoras.
O alvo do ataque de Garland são as pessoas que não se importam com a política, que desligam o fogo de artilharia e ignoram as filas de famílias deslocadas ao longo da estrada, que parecem e agem exatamente como você e eu. Também é um recado dado aos ditadores, esses que não se importam com a vida humana, que agem de acordo com os seus próprios interesses e enxergam o poder apenas para não serem pegos em suas arapucas de corrupção, que as suas consciências sabem: se me pegarem, acabou! Por todo o filme, Garland nos oferece imagens fatalistas e de pesadelo saídas diretamente de “Desolation Row” de Bob Dylan. Tudo é bem configurado, de forma a parecer uma sátira ou um suspense de conspiração, mas Guerra Civil é mais um filme de terror construído do que um thriller policial, principalmente quando assistimos uma América reconhecivelmente destruída em ruínas, para não mencionar um tanque vagando ameaçadoramente na Park Avenue. São partes impressionantes que de fato vão deixar você arrepiado.
Em seu filme anterior, Homens, Garland trabalhou na perspectiva da misoginia e de tudo de ruim que o homem em geral tem. É um filme tão enervante e nauseante sobre a masculinidade tóxica desenfreada que já vimos — simplesmente se lembrássemos de casos como o de Harvey Weinstein. Guerra Civil é desafiador em sua perspectiva de apresentação de um futuro que parece não ser muito distante. Traz no ponto de vista de uma fotojornalista para representar o papel da imprensa e a importância que ela tem no mundo, a realidade cruel captada através das câmeras. Também envolve a coragem em estar no meio da artilharia, se arriscando a ser baleada para registrar o conflito. Um click registrado em todos esses momentos mostra a importância da imprensa livre e ativa para documentar fatos que entram para a história.