‘Ainda Estou Aqui’ humaniza a imagem familiar, expõe a dituradura e traz uma Fernanda Torres em seu papel mais importante até agora

Walter Salles nos deu Central do Brasil e Diários de Motocicleta, mas ele não estava satisfeito e faz de seu novo filme um clássico instantâneo do cinema brasileiro

Walter Salles não chegou aqui por acaso. Imagine que o cineasta brasileiro já nos deu narrativas tão sensíveis sobre personagens locais que nos definem. Ele nos deu Central do Brasil, com Fernanda Montenegro no papel que a Academia injustamente tirou da nossa maior atriz. Mas ainda assim, ele, como um cineasta genial que é, também nos entregou Abril Despedaçado, sobre vingança entre irmãos no sertão nordestino dos anos 1910. Mas seu filme mais importante, no sentido de que fora reconhecido pela Academia, é o seu Diários de Motocicleta, o tão aclamado filme vencedor do Oscar de melhor filme internacional, ao contar a expedição de 1952, inicialmente por moto, em toda a América do Sul por Chê Guevara e seu amigo Alberto Granado.

Acho que seu currículo já o apresente magistralmente.

Por isso que um filme como Ainda Estou Aqui, seu mais recente filme e um dos mais impactantes do ponto de vista humano, é uma bomba cinematográfica sobre o Caso Rubens Paiva, o polêmico desaparecimento de Paiva, que fora deputado federal em 1964, quando aconteceu o Golpe Militar. Ainda assim, com tudo para se apresentar como um filme do ponto de vista de um guerrilheiro de esquerda, Salles muda o foco da história. Mas isso é uma coisa boa, pois ele foca no que aconteceu com a família Paiva. Tudo começa com uma calorosa Cidade Maravilhosa em seus tempos setentistas. Para ser mais claro: 1970, o ano do Milagre Econômico, do Brasil Tricampeão Mundial de Futebol e da propaganda do presidente Artur da Costa e Silva nos principais meios de difusão de sua época para ajudar na aprovação de um governo ilegítimo.

Mas vamos voltar ainda mais no tempo. Rubens Paiva era um deputado federal por São Paulo. Político do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), decidiu fugir para não ser pego pelo exército naquelas datas que aconteceram um dos períodos mais sombrios da nossa história. Após os fatos de 31 de março e 1º de abril de 1964, o Brasil se tornou numa ditadura militar injustificada e apoiada pela imprensa de sua época. Até então, de 1964 a 1970, o regime tornou-se ainda mais violento. É em todo esse embaraço autoritário que viveram a família Paiva, que nunca escondeu ser uma figura pública. E dentro de uma ditadura quem exatamente é perseguido? Seus opositores políticos. É aí que entra Paiva e sua família.

Ainda Estou Aqui foca totalmente na parte familiar, e isso pode pegar você desprevenido se realmente estiver encontrando um filme polarizador dentro do ponto de vista político. Tudo começa com os Paiva, uma família linda, saudável. Com pais presentes na infância de seus filhos, e que infância. Eles brincam na praia de Copabacana, jogando vôlei e futebol. Mas dentro dessa cortina tão positiva, Rubens Paiva (um Selton Mello perfeito e carismático em seu papel) procura esconder a verdadeira realidade política do país a seus filhos. Tanto é que não demora muito para ele se preocupar, junto à sua esposa, Eunice Paiva (uma Fernanda Torres em seu melhor papel na carreira do cinema e da teledramaturgia), seu constante alerta em relação aos milicos, que avançavam gradualmente na perseguição de seus oponentes políticos.

Em sua casa, predominava a música de ótima qualidade ─ e aqui, está um ponto positivo para a trilha do filme, que carrega canções da nossa música popular, tais como Erasmo Carlos, Gal Costa, Tim Maia, Gilberto Gil e Caetano Veloso ─ que dão uma sonoridade de uma época que a Geração Z não faz ideia do que era morar no Brasil. E com toda essa alegria brasileira, apesar de ter voltado a exercer a engenharia e a cuidar de seus negócios sem deixar de lado seus momentos ao lado de sua família e seus amigos, Rubens, por continuar prestando suporte aos exilados sem comentar praticamente nada de suas atividades políticas com Eunice e filhos, teve sua casa invadida, ocupada por seis homens desconhecidos e misteriosos, e em seguida levado preso para nunca mais voltar.

Imagine você que milhares de pessoas foram levadas pelas autoridades brasileiras sem aviso prévio e sem nenhum conhecimento do porque estavam sendo convocados. Isso é um dos pontos mais impactantes do filme, quando Eunice e sua filha também são levadas em cativeiro, onde interrogatórios eram feitos, torturas psicológicas eram realizadas e uma mãe foi separada de sua filha. Imagine o quão assustador deve ter sido para Eunice ouvir os gritos de sua filha e estando impotente dentro de uma cela, sabe-se lá por quantos dias. O fato é que Ainda Estou Aqui um sistema espúrio e desumano, que coloca autoridades nas ruas, leva seus pais e seus filhos e nunca mais os vêem. Que justiça é essa que você não sabe o motivo pelo qual está sendo preso? Salles coloca Fernanda Torres como principal holofote aqui. Dá para observar o sofrimento, o medo e a incerteza diante de seus olhos. Ela, no entanto, não chora facilmente. É uma verdadeira lutadora política que segura toda a opressão do governo em suas costas para tentar dar uma vida de infância ingênua e saudável para os seus filhos.

Impossível deixar de mencionar a presença de Fernanda Montenegro, que interpreta a versão idosa de Eunice, já de cadeira de rodas e sofrendo de Alzheimer. Nas cenas finais do filme, a senhora Eunice está diante da televisão, olhando e ouvindo sobre a reportagem do Caso Rubens Paiva. Seus olhos, que antes estavam distantes, passaram a relembrar a vida que passou e tudo o que esta grande senhora precisou lutar para conseguir um simples atestado de óbito de seu marido. Para Montenegro, de 95 anos, o momento do filme também se refere a ela, ao contraste que sua filha está no papel principal, fazendo uma ponte familiar entre Torres e Montenegro. Para Torres, significa levar o legado de sua mãe, que deveria ter levado o Oscar de melhor atriz por Central do Brasil.

Inspirado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado desaparecido, Ainda Estou Aqui foi premiado como melhor roteiro no Festival de Veneza e escolhido por unanimidade para representar o Brasil no Oscar do próximo ano. Parece que houve uma unanimidade da indústria brasileira de longas-metragens em apontar o novo filme de Salles para representar nosso país nos festivais de cinema internacionais e nas premiações que estão por vir. Ainda que o Brasil esteja na torcida pelo Oscar, Ainda Estou Aqui é uma das melhores virtudes do nosso cinema tornou em uma história contada através de imagens em movimento.

Ainda Estou Aqui está disponível no Arcoplex Cinemas do Shopping do Vale.