Nunca na história do cinema brasileiro, um filme foi tão lembrado como referência da nossa sétima arte como Deus e o Diabo na Terra do Sol. A obra de Glauber Rocha é marginal, independente, preto e branco em sua narrativa ─ e a certeza de que temos uma história legitimamente brasileira. Ao mesmo tempo, o cineasta baiano teve seu filme como um instrumento de grande difusão no universo dos cineastas durante a década de 1960, quando foi para o Festival de Cannes. É óbvio que sempre é bom a validação estrangeira de uma obra nacional, e isso enriquece nossa cultura como legado para as próximas gerações, mas aqui, principalmente nos últimos 30 anos, o brasileiro comum não tem dado sua devida importância. É inegável, no entanto, que Deus e o Diabo tem um poder de estreia eletrizante e um estilo tipicamente brasileiro e nordestino.
Segundo filme da filmografia de Rocha, o longa-metragem abre com um extenso solo esbranquiçado e granulado de arbustos cinzentos e seixos escuros. Sua aura é sertaneja, e a julgar pelo deserto seco do nordeste, onde não há água, mas cansaço e sofrimento, a câmera se move da direita para a esquerda através de uma perspectiva transmitida em um ângulo baixo, e transforma a terra em um pano de fundo para fontes de texto austeras. Sua discretize pelo oculto faz com que nosso cineasta corte para dois close-ups que mostram os dentes de uma vaca morta e seus olhos sendo comidos por moscas. Em seguida, nosso protagonista é apresentado. Olhos distantes e figura triste, cujo rosto está coberto por um chapéu amassado enquanto ele olha para a carcaça do animal. Manuel, interpretado por Geraldo Del Rey, se depara com uma procissão religiosa liderada por um profeta chamado Sebastião (Lídio Silva) e conta para sua esposa Rosa, vivida nas telas grandes pela atriz brasileira Yoná Magalhães, sobre este encontro.
Aliás, dor e sofrimento é o que Rocha transmite diante dos nossos olhos. Uma vez que você se depara com a falta de oportunidade que nosso protagonista enfrenta, não demora muito para que nos solidarizemos com ele. Manuel está clamando por um milagre, mas não se trata de um milagre simples. O filme começa com uma mensagem sobre a exploração histórica da classe trabalhadora pela oligarquia elitista rural, costumeiramente presente desde o período colonial. Se observarmos o período em que Deus e o Diabo na Terra do Sol foi concebido, o Brasil vivia um dos seus períodos políticos mais nefastos: em 31 de março de 1964, as tropas lideradas pelo General Olímpio Mourão Filho partiram de Juiz de Fora, Minas Gerais, em direção ao Rio de Janeiro. Esse movimento inicial desencadeou uma série de ações similares por outras unidades militares em todo o país. Não demorou muito para que no mesmo dia o presidente João Goulart fosse deposto sem reação alguma. O que Glauber Rocha faz aqui é transmitir sua história, misturando elementos que “cutucam” na raíz do problema político brasileiro.
Manuel trabalha para um fazendeiro, cuidando de suas vacas. Aqui, Manuel tem a demanda de cuidar suas vacas e as de seu patrão. Mas descobrimos que uma seca acaba de tirar a vida das últimas vacas que Manuel foi contratado para pastorear. Seu empregador o cobra pela perda de seu gado. Em desespero, nosso personagem ataca seu chefe e foge com Rosa em busca de um “milagre” que nunca parece acontecer. Desde então, Deus e o Diabo na Terra do Sol apresenta Manuel e Rosa divididos através de duas maneiras de milagres para suas vidas: a esperança através da transcendência religiosa e a revolução armada como maneira de adquirir direitos para uma vida digna. São dois contrastes fortes que apresentam o imaginário popular do Brasil e do brasileiro. Tudo o que o brasileiro deseja é ter uma vida digna, e para isso se apega à religião cristã católica, e há inúmeros simbolismos dentro do filme que reforçam que o brasileiro tem um anseio por ser amparado. De acordo com o estilo do filme, Manuel se encarrega de buscar um sentido para sua vida e a de sua esposa, através de um guia que o converte. Manuel expressa sua fé de forma tão devota que ele nem percebe abuso de seu sacerdote.
Deus e o Diabo na Terra do Sol é o filme mais importante da era do Cinema Novo ─ um movimento audiovisual criado com a missão de desenvolver uma identidade nacional, combinando e misturando uma experimentação formal e um forte radicalismo político. Dentro desse grande movimento, jovens cineastas como Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra, Eduardo Coutinho e Leon Hirszman ajudaram a popularizar o termo, que foi levado para fora do país e inspirado a Nouvelle Vague na França, que ainda refletia sobre os dissabores do amor não correspondido. Enquanto os franceses falavam de sentimentos, os brasileiros cutucavam a realidade social do povo brasileiro. Esse modelo de comunicação visual através das grandes telas de cinema é a raiz do filme de Glauber Rocha. Também, a narrativa do cineasta brasileiro relembra lutas do passado, ele as adapta de acordo com nosso tempo, encaixando o contexto contemporâneo da memória popular. Tão específico da cultura nordestina do Brasil e popularizado através de panfletos literários chamados cordel, o cangaceiro se tornou um símbolo de resistência organizada contra a elite rural, principalmente por conta da ineficácia do Estado no que diz respeito aos problemas sociais.
Rocha, como um grande contador de histórias, escolhe tendências profundas para explorar a característica radicalista presente na expressão popular. Ele também adiciona pitadas psicológicas, quando o diretor funde símbolos nacionais com um estilo que transforma grandes influências cinematográficas, como a dialética do russo Sergei Eisenstein de O Encouraçado de Potemkin, que também está presente aqui. Ele usa essa forma de filme, neste caso propriamente dito um faroeste, como algo meramente e intencionalmente impactante. Trata-se de uma terra sem lei, onde esta “lei” é aplicada através da bala da arma do opressor contra o oprimido. Glauber Rocha coloca essa síntese de dor e falta de perspectiva diante dos nossos olhos. É um tiro contra a esperança. E aqui, ele faz do opressor em uma personificação do que o Brasil realmente é: uma terra abençoada devastada por aproveitadores sem nenhum sentido e dignidade. Por isso a importância do cinema enquanto ferramenta de arte para tirar o espectador da ignorância. Tudo isso para garantir uma experiência cinematográfica e transcendental.
O Cinema Novo coincidiria com o início da Tropicália, movimento musical que incentivava provocar uma renovação e modernização da cultura brasileira, especialmente na música, ao mesmo tempo em que desafiava as convenções e tradições estabelecidas. Como movimentos fundados na mesma época, cinema e a música andaram juntas para abrir através da arte uma qualidade diferenciada de mensagem de protesto. Não demoraria muito para que em maio de 1968, protestos despertassem a fúria do governo de Charles de Gaulle e ele tocasse os policiais para cima dos movimentos estudantis. O cinema de Glauber Rocha é uma arte revolucionária, e ele coloca essa violência brutal dentro de seu filme. Ao mesmo tempo, a precariedade social e a exuberância criativa dessas filmagens se tornaram marca registrada para Rocha, que aderiu o atributo da música regionalista na melhor forma de expressar o sofrimento e a redenção que um dia o sertanejo tanto anseia. “Sertão Vai Virar Mar”, canção de Sérgio Ricardo que toca no final da película, embeleza mas coloca como ponto central a violência patrocinada pelo Estado que é fortemente usada contra a resistência popular.
Em Deus e o Diabo na Terra do Sol, Manuel e Corisco olham diretamente para a câmera, que está atento em focar em seus olhares, deixando o espectador ciente de que estão assistindo a uma repressão totalmente colonialista. A violência representada dentro do filme é mais teatralmente coreografada, e o melodrama é colocado de uma maneira com que vejamos um filme-cordel. Mas é a esperança de Manuel que move o filme o tempo todo, mesmo que ele não veja perspectiva alguma em seu futuro. A esperança, aqui, também tem o seu símbolo em forma de personagem: Rosa. A esposa de Manuel é a força em questão, transmitindo uma empatia e uma força de vontade e de convencimento que é o maior trabalho da carreira de Yoná Magalhães, conhecida por grandes papéis no cinema e em novelas brasileiras ao longo das décadas. Mas a mensagem é, acima de tudo, um tiro saindo de uma espingarda a queima roupa. É o cinema brasileiro inspirando gerações de cinéfilos e a certeza de que ainda há sentido contar uma história necessária que envolve a realidade brasileira, para que as futuras gerações não esqueçam dos erros do passado. A sétima arte agradece.