Jornalista gravataiense revela o ‘mistério’ da província japonesa sem casos de coronavírus

Reportagem de Ana Paula Bretschneider Ramos ganhou destaque na BBC News Brasil. Veja a história da ex-moradora de Cachoeirinha que foi em busca de um sonho do outro lado do mundo

Fotos: Johannes Ahlström

Em 2014, então com 22 anos, Ana Paula Bretschneider Ramos realizou seu grande sonho e embarcou para o Japão. Hoje, com 28 anos, a jornalista nascida em Gravataí e criada no Parque Brasília, em Cachoeirinha, vive na província de Shizuoka, onde há a maior comunidade brasileira lá do outro lado do mundo — são quase 10 mil brasileiros morando naquela cidade. Tem três livros escritos e um monte de projetos na cabeça. E uma realização profissional em desenvolvimento: apresentar o Japão para os brasileiros. Recentemente, teve publicada reportagem na BBC News Brasil sobre Iwate, a única província japonesa sem casos de coronavírus, que você lê clicando aqui.

Ainda em Cachoeirinha, foi aos 13 anos que a então estudante do Inedi despertou o interesse pelo jornalismo, por gostar de escrever e pela possibilidade de investigar assuntos e mostrar para as pessoas como as coisas são. “A atuação do jornalismo e seu impacto na sociedade sempre me fascinou”, recorda. Já o interesse pelo Japão surgiu aos 15 anos, por influência da cultura pop japonesa, da música e dos desenhos. “Logo que tive o meu primeiro contato com a língua, vendo uma animação, me apaixonei. Eu não tinha ideia de como era o Japão e nem pensava em viajar ainda, mas tive certeza de que queria aprender japonês”, conta. Então, entrou para um curso na PUC quando ainda estava no Ensino Médio. “O curso era no prédio de Letras e depois fui estudar Jornalismo ali mesmo, na Famecos, que é o prédio da frente. Fiz curso de japonês por cinco anos e nesse tempo alimentei a vontade de conhecer o país. Fui me apaixonando também pela cultura japonesa.”

“Eu sonhava todos os dias em vir para o Japão. Juntei dinheiro durante os estágios da faculdade e uns bicos que eu fazia na época, produzindo conteúdo para sites e blogs”, relembra. No início, a família relutou bastante. Havia o medo de que Ana não voltasse mais — e foi o que aconteceu. “Mas, depois, me apoiaram. Consegui realizar meu sonho de vir ao Japão em 2014, logo depois de me formar na faculdade”, conta. “Vim para estudar japonês por um ano, mas tinha planos de ficar. Meses antes de acabar o intercâmbio, comecei a fazer freela para a Revista Alternativa, que é para brasileiros que moram no Japão. No mês que acabaria meus estudos, fui contratada com repórter e trabalhei lá por 5 anos”, detalha.

Nos primeiros anos, Ana morava em Osaka, uma das maiores cidades na região oeste do país. Por causa do trabalho, se mudou para Hamamatsu em 2018. “É uma cidade na província de Shizuoka, onde há a maior comunidade brasileira do Japão. Tem quase 10 mil brasileiros morando nesta cidade”, conta. Desde então, passou a realizar um trabalho mergulhado na comunidade, fazendo cobertura de eventos, matérias sobre pessoas talentosas que estão se destacando, problemas que os brasileiros enfrentam por lá, entre outros temas.

Em Osaka, na frente do Abeno Harukas, o prédio mais alto do Japão: “Eu morava ali do lado”

Uma vez ao ano, nas férias, Ana volta ao Brasil. “É sempre muito gostoso rever as pessoas queridas, os lugares e a comida que eu amo e não tenho muito acesso. Mas confesso que me acostumei demais com as coisas daqui, estranho algumas coisas quando volto, como o hábito de deixar a bandeja em cima da mesa ou entrar em casa de sapato. Aqui todo mundo deixa o sapato na entrada.

Um novo mundo

Ana já tinha um nível intermediário de japonês quando chegou no Japão, então não teve muitas dificuldades de comunicação. Mas o choque cultural foi um desafio. “A comida eu só conhecia pelos poucos restaurantes típicos de Porto Alegre e demorei um pouco para me adaptar, hoje amo comida japonesa. Com relação a cultura foram vários choques, sempre fui pouco disciplinada, muito tranquila e direta. Eu me deparei com uma sociedade cheia de regras e hierarquias. Os japoneses levam um susto se você é direto com eles, eles dão uma volta enorme para te dizer algo.”
“Aprendi com os japoneses a ter mais consciência social. Aqui os espaços públicos funcionam sempre pensando no coletivo”
Mas ela conta que a troca cultural sempre foi muito bacana, principalmente em Osaka, uma cidade com pouca influência dos brasileiros. “Os japoneses são curiosos, querem saber sobre a cultura, a sua vida no país de origem, as coisas que você gosta e sente falta. Aprendi com eles a ter mais consciência social. Aqui os espaços públicos funcionam sempre pensando no coletivo. Você nunca deixa a bandeja em cima da mesa e vai embora em uma lancheria ou cafeteria. Tem que ficar parado do lado direito ou esquerdo da escada rolante da estação de trem, para deixar que o pessoal com pressa tenha um caminho livre. Tudo funciona em prol da harmonia no convívio social, é muito raro você sair na rua para resolver algo e passar perrengue. Quase nunca passo por estresse em ambientes públicos e agora sinto o choque quando volto ao Brasil.”

Era uma vez…

‘A Cor dos Meus Dias’, de Ana P. Stokes

Desde pequena, Ana gostava de escrever. Na escola era apaixonada pelas aulas de redação. “Começava o texto com um ‘Era uma vez’ e morria de orgulho quando a ‘profe’ elogiava. Com uns 20 anos eu tentei escrever um livro, mas não tive maturidade e nem planejamento, fiz 20 páginas e depois apaguei o arquivo. Em 2017 eu me senti pronta para escrever um livro de verdade. Na época que estava pensando em uma história, fiz uma matéria sobre o amianto, o pó cancerígeno presente nas construções, que provoca doenças pulmonares severas. Aqui no Japão tinha uma estimativa de que pelo menos 22 mil casas tinham revestimento de material de amianto. Na época eu pensei no Brasil e levei um choque ao ver que ainda tinha uma fábrica de amianto ativa em Goiás, que aliás retomou a atividade este ano.” Ela, então, fez uma história sobre uma personagem gaúcha, que se descobre com asbestose, uma das doenças do amianto, e se vê em um quadro progressivo e incurável de deterioração dos pulmões. O nome deste livro é A Cor dos Meus Dias. “Sem me sentir preparada para publicar, fiz meu segundo livro, uma fantasia chamada Sineroff: E Elo Entre dois mundos. Este livro tem protagonistas brasileiros aqui no Japão, que vão parar em um mundo paralelo depois de uma excursão escolar em uma caverna, que existe aqui em Hamamatsu”, conta. No ano passado, Ana se dedicou a escrita do terceiro livro. Se chama O Oitavo Andar. “É um suspense que acontece em Gramado, depois que a protagonista chega para a uma viagem turística e flagra um corpo escondido na parte de trás de uma Kombi. Acaba perseguida por uma organização criminosa.”

“Este ano iniciei um trabalho mais independente na área do jornalismo e passei a me aprofundar no estudo de técnicas literárias e a trabalhar na edição das minhas obras. Estou recebendo a assessoria de uma editora maravilhosa, a Alessandra Ponomarenco Justus, e com ela tenho trabalhado em Sineroff. Pretendo publicar os três livros até o ano que vem, mas estou planejando colocar O Oitavo Andar na Amazon este ano, para concorrer ao prêmio Kindle”, revela.

Romance em Cachoeirinha

No Parque de Nara, conhecido pela presença dos veados

Ana tem ainda alguns outros projetos literários em vista. Em deles é O Diário da Minha Vida Ingrata, um diário contando a vida a partir do ponto de vista da minha gata, a Sabrina. “Outro projeto é no campo do jornalismo literário, um romance de não-ficção para contar a história da minha avó Gomercinda, que saiu da roça aos 14 anos para trabalhar de babá em casas de família em Porto Alegre. Também pretendo escrever um romance que se passa em Cachoeirinha, deve isto a minha terra natal.”

Seus livros, Ana assinará como ‘Ana P. Stokes’. “É uma homenagem a minha tataravó, Elen Hill Stokes, que nasceu na Índia durante as missões da igreja protestante.”

Japão sem Tarjas

Ana na aldeia turística Shirakawa-go, na província de Gifu

Ana saiu da revista brasileira onde atuava no fim de abril, então iniciou uma nova etapa no jornalismo em maio, como conta: “Coloquei em prática algo que sempre tive vontade de fazer, que é produzir matérias sobre o Japão para o Brasil, abrangendo um público maior, que tem curiosidade, mas muitas vezes não sabe do que rola por aqui”, explica. Ela fez seu primeiro trabalho para a BBC News Brasil em maio como colaboradora, uma matéria sobre Iwate, a única província japonesa sem casos de coronavírus. “Tive uma boa repercussão, pois a matéria acabou chamando atenção dos japoneses. Ela foi traduzida por um portal japonês, para mostrar que Iwate foi destaque no Brasil e acabou compartilhada no Yahoo Japan. Depois fui chamada pela Emissora TBS junto com um jornalista do The Wall Street Journal para falar sobre as nossas matérias sobre Iwate. Saiu em um programa de notícias matinal, foi bem interessante.”

“Agora em junho, iniciei um projeto independente, produzindo matérias para a minha página no Medium. A segunda que publiquei, sobre um brasileiro que fala oito idiomas e não consegue emprego aqui no Japão, acabou rendendo um amplo debate sobre a discriminação em empresas japonesas. Então criei uma página, chamada de Japão sem Tarjas, para postar algumas matérias e reflexões sobre as coisas que ocorrem por aqui. Também tenho uma coluna no site Brasileiras pelo Mundo, onde também abordo questões da vida no Japão.”

A pandemia do outro lado do mundo

Como conta a jornalista, a pandemia no Japão começou com uma nítida resistência do governo de lá, por causa da questão das Olimpíadas. “Poucos testes estavam sendo realizados e o governo impôs muitas restrições, autorizando o teste apenas em pessoas que tiveram um contato óbvio com infectados, que estiveram fora do país ou que apresentavam um quadro de quatro dias de febre.”
A situação foi mudando quando as Olimpíadas foram suspensas em março. No dia seguinte ao anúncio, Tóquio confirmou 100 casos da doença, apesar de ter poucas dezenas antes disso. Depois começou a aparecer casos no país todo. “A primeira província com mais contaminados foi Hokkaido, no extremo norte do Japão, mas logo Tóquio, Osaka e outras cidades grandes começaram a apresentar muitos casos. Em 7 de abril, o primeiro-ministro Shinzo Abe declarou estado de emergência para sete províncias, mas dias depois o estado foi ampliado para todo o país.”
“O que eu acho interessante sobre o Japão é que não houve lockdown, pois o governo esclareceu que não poderia tomar medidas duras de isolamento por causa de um impedimento na Constituição. O governo passou a orientar o isolamento e a pedir a colaboração da sociedade para fechar o comércio, evitar saídas desnecessárias e contato próximo com outras pessoas. Os japoneses se mostraram bastantes disciplinados e durante um bom tempo em maio, os centros das grandes cidades ficaram vazios, assim como as estações e os trens.”
“Gosto de dizer que o Japão conteve o vírus na base da disciplina. Aquela história de pensar no coletivo. Agora a vida voltou mais ou menos ao normal, mas é raro ver alguém na rua sem máscara ou usando a máscara de forma errada. Os estabelecimentos também tomaram medidas de distanciamento entre clientes e higiene.”