Elisabeth Sparkle, a musa de Hollywood que uma vez brilhou no tapete vermelho e ocupava seu lugar cativo na Calçada da Fama, agora é só um rosto empoeirado na lembrança dos turistas, uma selfie esquecida e desbotada entre estrelas que já tiveram seu momento de glória. Interpretada por uma Demi Moore no auge de sua performance, Sparkle está no fundo do poço, jogada aos leões por um sistema que cospe mulheres como ela quando o tempo começa a deixar marcas. O chefe imundo e sexista de Sparkle, Harvey (Dennis Quaid), a demite com um sorriso de desprezo, em nome da “modernização” — ou, para ser mais claro, da substituição de mulheres mais velhas por modelos mais jovens e mais sexys. Bem-vindos à Hollywood, onde a juventude é moeda, e o resto é lixo.
O que faz uma mulher famosa com mais de 50 anos e sem propósito, quando o mundo ao seu redor não apenas a rejeita, mas a faz desaparecer? Se chama “A Substância”, uma fórmula milagrosa que promete reverter a decadência da idade e devolver à pele o frescor da juventude. Mas como todo truque barato, a solução tem um preço — e, nesse caso, o custo é o próprio corpo. Elisabeth, desesperada para se manter no jogo, compra a promessa de renovação e acaba se submetendo ao que parece uma experiência de rejuvenescimento insana. O que acontece em seguida? Algo que nem os maiores freaks do grindhouse poderiam antecipar.
Então, entra Sue, a versão de vinte e poucos anos de Elisabeth, que literalmente surge das costas de sua predecessora, como uma cicatriz viva e pulsante de tudo o que Hollywood vomitou sobre a cultura pop. Sue é uma versão de si mesma que não carrega os fardos de décadas de decepção e abuso. Ela é jovem, viril e um imã de desejo. Tudo o que Elisabeth perdeu, Sue ganhou em um piscar de olhos, e essa nova mulher começa a tomar o lugar da original. E o que acontece quando o brilho da juventude, amplificado por um rosto fresco e uma pele perfeita, se encontra com a ganância, a perversão e o fetichismo dos homens ao redor? Uma revolução nada bonitinha — uma revolução sangrenta, grotesca e escarrada na cara de todo sistema que adora destruir as mulheres depois de consumir seus corpos.
A Substância não é apenas um thriller — é uma máquina de guerra, uma sátira macabra de como a indústria da beleza e o estigma da juventude, alimentados pelo fetiche masculino, se misturam em uma dança venenosa. Fargeat, a cineasta que nos trouxe Vingança (2017), aqui acerta em cheio no ponto crucial da questão. Ela pega o estigma que a sociedade joga sobre as mulheres envelhecendo e transforma em um pesadelo visceral, com um olhar de terror corporal que beira o filme de terror trash. Cada cena de “nascimento” entre Elisabeth e Sue — sim, o tipo de nascimento que faria Cronenberg estremecer — é uma carnificina visual, uma metáfora para a maneira como Hollywood rasga e devora suas estrelas, moldando e descartando todas elas como objetos descartáveis.
A selvageria é o destaque de A Substância: como se o enredo já não fosse uma loucura o suficiente, a narrativa se arrasta para um estado de violência de uma beleza quase poética, em que as Sparkles — a versão velha e a nova, a carne podre e a carne fresca — colidem como duas metades de uma mesma alma dilacerada. Sue, a nova mulher, se apodera do palco, da atenção, dos homens e dos holofotes. Mas o que acontece quando o poder feminino, encarnado em um ser imortal e desejado, começa a questionar as próprias regras do jogo? Sue começa a se rebelar contra o controle do sistema, e os resultados são como uma descarga elétrica na base da sociedade de Hollywood. As cenas são devastadoras, repletas de ação física e emocional, levando a um banho de sangue que faz a carne se retorcer de prazer e desgosto. O que Fargeat faz é trazer à tona questões universais e brutais.
E no centro desse terror, temos Moore, entregando sua melhor performance em décadas. Sua Sparkle é uma amostra de força emocional — uma mulher esmagada pelo tempo e pela pressão de se manter jovem, que se vê sendo devorada por uma versão de si mesma mais jovem, mais rápida e mais sedutora. O banho de sangue climático, com um uso de efeitos físicos e uma abordagem quase hipnótica, é mais do que um momento de puro gore: é a pura liberação de um conflito existencial que todos nós, de algum modo, enfrentamos. Hollywood pode ser uma máquina de devorar corpos, mas quando uma mulher decide reescrever as regras do jogo — mesmo que isso signifique seu fim — você não pode deixar de aplaudir.
A Substância não vai curar os males sexistas de Hollywood nem redefinir os padrões de beleza da sociedade. Há uma beleza indescritível no caos que surge dessa luta interna entre as duas Sparkles. Uma mulher tentando desesperadamente manter a aparência de sua juventude, enquanto outra, mais jovem, toma seu lugar com uma confiança perigosa, sem qualquer empatia. É a luta de um ego dilacerado, a luta pelo controle do corpo e da alma. Mas, com sua violência sangrenta e incontrolável, A Substância nos força a olhar para os monstros que todos fomos ensinados a adorar. E talvez, só talvez, a entender que, no jogo da fama e da juventude eterna, o nosso maior inimigo é quem justamente olhamos através do espelho.